CLIFFORD, James. Sobre o surrealismo etnográfico, in. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011

Situar a atividade etnográfica levando em consideração suas circunstâncias históricas é uma característica fundamental para a análise dos textos produzidos pela mesma. Esse é o sentido geral da argumentação de James Clifford em Sobre o surrealismo etnográfico. Tendo como base o contexto francês do entre guerras, o autor vai localizar como o desenvolvimento da etnografia enquanto técnica científica e do surrealismo enquanto movimento de vanguarda artística andaram muito mais próximos do que se pode imaginar. A questão levantada é que em certos momento ambos se confundiam, tendo inclusive nomes comuns entre seus autores, e centros especializados que hora solidificaram-se como científicos, hora como artísticos. O grande potencial desse tipo de análise é ver como que, no início e desenvolvimentos tanto da etnografia como do surrealismo, os significados da ordem cultural foram desestabilizados e parodiados, em certa medida (CLIFFORD, 2011). Na momento em que ambos ganhavam importância, essa preocupação foi perdendo força até que a etnografia e o surrealismo se tornassem campos especializados e com regras muito bem delimitadas de incorporação.

O uso do termo surrealismo por Clifford é bem específico, e, até certo ponto, bem expandido do que geralmente tem-se por definição do mesmo. Nas palavras do autor:

Estou usando o termo surrealismo num sentido obviamente expandido, para circunscrever uma estética que valoriza, fragmentos, coleções curiosos, inesperadas justaposições – que funciona para provocar a manifestação de realidades extraordinárias com base no domínio do erótico, do exótico e do inconsciente (CLIFFORD, 2011, p. 122)

Essa definição tenta dar conta do desenvolvimento, ou do deslocamento, do olhar dos intelectuais franceses para o diferente, seja no campo das artes ou nos contextos acadêmicos. Sem estar expresso claramente no texto, pode-se dizer que seria um certa estrutura de sentimento em comum com a geração do entre guerras a partir de um determinado momento. A atitude surrealista presente no grupo que Clifford localizou diz respeito à forma mesma como lidar, catalogar e até mesmo apropriar do elemento estranho e exótico.

A experiência da primeira guerra mundial, e a quase certeza de uma segunda, colocou questionamentos importantes na vida moderna. Deixando sensações de maior instabilidades e de um self sem nenhuma base concreta e sólida, do ponto de vista da percepção individual, com a qual pudesse contar. James Clifford vai buscar, mais uma vez, em Walter Benjamim, para dar uma dimensão do que seria essa sensação. No texto O narrador Benjamim contrapõe a comunicação tradicional, baseada nas narrativas oratórias, com o modo completamente informacional que atingia seu ápice na primeira guerra mundial. A “experiência” da guerra de trincheiras escancarou o modo como as pessoas viam sua angústia na modernidade, seus modos de constituição do self e a falta de “amarras” para o mesmo (CLIFFORD, 2011).

Dessa forma, o que foi possível captar nesse momento, para muitos artistas e autores, foi a dimensão fragmentária de vida, e os momentos em que esse fragmentos, sejam eles trágicos ou não, mostravam uma beleza quase que exótica. Um tipo de experiência que não tinha preocupação na transmissão de conhecimentos, mas sim no choque, no contato direto com um fragmento deslocado. A preocupação anterior à guerra com fetiches da África, Oceania e das Américas se transformou em um verdadeiro evidenciamento da condição de fragmento que vivia a experiência humana. O relativismo que se conhece hoje foi possível graças a todos esses momentos de contato, forçado ou não.

A palavra etnografia, usada por Clifford para mostrar essa dimensão do fragmento exótico no surrealismo, tem uma definição específica, nas palavras dele:

Estou me referindo a uma predisposição cultural mais geral, que atravessa a antropologia moderna e que esta ciência partilha com a arte e a escrita do século XX. O rótulo etnográfico sugere uma característica atitude de observação participante entre os artefatos de uma realidade cultural tornada estranha. Os surrealistas estavam intensamente interessados em mundos exóticos, entre os quais ele incluíam uma certa Paris. Sua atitude, embora comparável àquela do pesquisador de campo, que tenta tornar compreensível o não familiar, tendia a trabalhar no sentido inverso, fazendo o familiar se tornar estranho. O contraste é de fato gerado por um jogo contínuo entre o familiar e o estranho, do qual a etnografia e o surrealismo eram dois elementos. Esse jogo é constitutivo da moderna situação cultural que estou tomando como base para meu estudo (Ibid. p. 125)

Agora fica claro que, de fato, está se falando de uma estrutura de sentimento, que vai dar conta desse contato com o estranho, mas também do choque do estranhamento do familiar. Essa característica fundamental vai aproximar, efetivamente, a etnografia e o surrealismo que, embora sejam campos específicos e institucionalmente separados, guardando para si suas peculiaridades, tornam-se cúmplices por compartilharem o rótulo etnográfico em suas respectivas experiências.

Ainda vale a pena levar em consideração a influência e o estímulo intelectual exercidos por Marciel Mauss. Clifford aponta e localiza a influência de Maus em muitos dos grandes nomes da etnografia francesa e de artistas e escritores que foram surrealistas, ou romperam com o o grupo dos surrealistas. Essa influência faz a ponte para outro momento do texto, o momento em que a atitude propriamente etnográfica, e agora sim falando de método de pesquisa, é influenciada pelo surrealismo. Primeiramente, a partir de depoimento e escritos de vários autores, James Clifford escreve como as aulas de Maus eram dispersas e ao mesmo tempo performáticas. Ele não tinha muita preocupação em seguir uma linha única de raciocínio e que, através de uma erudição enorme, que lhe permitia utilizar exemplos de vários lugares do mundo, fazia nuances de fragmentos culturais que despertavam nos alunos questões sem resposta, possíveis problemas de pesquisa e muitas confusões que só se resolveriam com um trabalho de campo consistente e efetivo. E, em segundo lugar, as expedições mais bem sucedidas, em termos de resultados e catalogação, datam exatamente desse momento, das aulas de Mauss e dos primeiros alunos influenciados por ele (CLIFFORD, 2011).

É importante fazer essa consideração, pois existe uma congruência enorme em termos de momentos específicos do contexto intelectual francês. No mesmo ano, de 1925, é criado o instituto de etnologia, pelo grupo de Mauss. É lançado o primeiro manifesto surrealista, e ai o movimento começa a ganhar notoriedade fora dos círculos de seus membros e ex-membros. Ocorre uma verdadeira explosão cultural na França, onde o Jazz se torna o elemento exótico a ser tomado pela burguesia de vanguarda (CLIFFORD, 2011) e os bares dos negros são “invadidos” pelo “espírito” de procura do selvagem (CLIFFORD, 2011). Assim, não se tem apenas uma quase uniformidade entre os eventos que influenciaram um surrealismo enquanto movimento artístico e a etnografia enquanto técnica de pesquisa, tem-se também a manifestação de formas concretas que foram influenciadas pela estrutura de sentimento que emergiu no entre guerras. Os alunos de Maus que depois de instituto, tornaram-se grandes etnólogos, carregavam claramente o projeto de transgressão da realidade através dos fragmentos, o elemento surrealista de fato, e o vigor de análises intelectuais proporcionadas por Mauss.

As instituições de pesquisa, que de alguma forma foram derivadas desse instituto, a saber o Museé dl’Homme e o Collège de Sociologie, foram a expressão máxima da tensão que se desenvolveu posteriormente entre a análise científica, em termos positivos, e a “interpretação” do contato com o estranho, influencia direta do surrealismo. O museu era fruto do projeto de catalogação do “Homem” enquanto forma concreta de manifestação de sua humanidade. Exposições grandiosas, laboratório de monitoramento, tudo destinado à catalogar e representar a humanidade em seu antropos. Já o Collége, que assumidamente tinha suas bases no trabalho tardio de Durkhein, a saber As formas elementares da vida religiosa, estava preocupado, mesmo com um grupo extremamente diverso e de curta duração (CLIFFORD, 2011), com as formas de manifestação das coletividades enquanto constitutivas de membros em grupo. O elemento do fragmento exótico aparecia justamente nesse ponto, para que essas formas, pensadas na coletividade, pudessem ser “captadas”, tinham que passar por um estranhamento, uma exoticidade, enfim, um processo quase assumidamente surrealista. Outra diferença crucial entre essas duas instituições era suas preocupações básicas. O museu com seu projeto do antropos não levou em consideração as manifestações do cotidianos do Ocidente, tendo em vista o complexo contexto cultural que viva a França. Se “objeto” último era o “primitivo. No Collége isso era menos evidente, já que as coletividades também se manifestavam no Ocidente, só que agora na forma de uma solidariedade orgânica (CLIFFORD, 2011).

A sensação que fica após o término do texto, isso levando em consideração o imenso apanhado da história intelectual francesa da primeira metade do século XX, é que o contato do etnógrafo, e a exoticidade dos contextos culturais que são seu “objeto”, fazem parte sim do momento em que, no entre guerras, surge, possivelmente, uma noção comum de experiência fragmentada, que se da conta da formação de um self sem bases concretas, que vê na ausência, ou seja, na falta de algo comum e contínuo, um elemento chave para a constituição estética e científica. Claro que, recuperando o argumento desenvolvido em outros textos, James Clifford, quer, mesmo sem falar diretamente, mostrar que o alegórico prevalece, mas agora ele está mais preocupado em situar o desenvolvimento da etnografia com a estrutura de sentimento que foi generalizada no período do entre guerras.

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